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Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul

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Márcia dos Anjos Manoel: É suficiente levantar os panos quentes

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Márcia dos Anjos Manoel, Procuradora do Estado do RS e integrante do Departamento de Direitos Humanos da APERGS
Artigo publicado no portal Migalhas em 10/04/2024

No final do mês de março, mês que marca as lutas pelo Dia Internacional da Mulher, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil divulgou a formação de grupo de trabalho para redigir um protocolo de enfrentamento à violência contra mulheres advogadas.

O mote do protocolo foi o caso de uma advogada que usou suas redes sociais para levar a público sua renúncia ao cargo de conselheira seccional da respectiva OAB, fundamentada na falta de acolhimento institucional após denunciar um estupro cometido por outro conselheiro.

Também na última semana do mês das mulheres, repercutiram outros casos de violência contra a mulher sendo expostos em instituições que, no papel de apurar as denúncias, demonstraram a incapacidade de acolher as vítimas e fazer cessar o ciclo de violência.

Com efeito, as relações sociais e o próprio exercício do direito são carregados de violência simbólica, configurada através da legitimação de um discurso que mantém e estrutura a ideia de subordinação feminina1. Por isso mesmo, a apuração de denúncias de violência de gênero é acompanhada de violência simbólica cometida no curso de procedimentos que, ao tempo que se propõem a punir o agressor, reforçam sistematicamente a subordinação feminina.

Cito, por exemplo, a soltura de Daniel Alves no dia 25 de março, mediante pagamento de fiança de 1 milhão de euros para obter liberdade provisória numa condenação por estupro2. O jogador brasileiro também é alvo de um processo judicial por ter divulgado supostas imagens da vítima, mesmo depois de proibição judicial de que a identidade da vítima fosse divulgada.

A concessão da liberdade provisória e a divulgação de imagens do estuprador sendo liberado de cabeça erguida acenderam o debate sobre qual o preço que se cobra para se estuprar uma mulher sem consequências legais.

No mesmo dia 25 de março, veio a público o resultado de mais uma etapa do processo disciplinar instaurado pela defesa de Marcius Melhem na OAB/DF contra a advogada Mayra Cotta3. A advogada representa mulheres que acusam o ator por assédio e foi denunciada – e absolvida – por supostamente ter se manifestado sobre o processo em suas redes sociais.

Além do caso do assédio, o ator e humorista também responde judicialmente por perseguição e violência psicológica contra algumas das denunciantes4. Esta nova denúncia, associada à absolvição quase unânime da advogada na OAB/DF, geram questionamentos sobre a estratégia de reportar a advogada a sua entidade de classe.

No dia 26 de março, veio a tona um vídeo de um julgamento do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, no qual um desembargador insinuou que uma jovem denunciante de assédio era sonsa e reclamou de uma “caça aos homens”. Outro desembargador, na mesma sessão, alegou um modismo quanto a denúncias de assédio sexual e racismo5.

É incontestável como incomoda quando mulheres e pessoas negras tentam sobrepujar a dominação masculina branca.

Em todos esses casos, é notável como a postura da vítima sobre a forma de conduzir a denúncia é objeto de críticas e julgamentos. Chama atenção também a solidariedade masculina dentro da instituição.

O caso que ensejou o protocolo de enfrentamento à violência contra mulheres advogadas foi amplamente debatido na sessão do Conselho Federal da OAB ocorrida em 25 de março6. O presidente da seccional, em tribuna, parabenizou a advogada pela coragem de oferecer denúncia e expor o crime e prestou esclarecimentos sobre a atuação da Seccional, em resposta à acusação de omissão. Observou a necessidade de refletir sobre os procedimentos adotados, verificar eventuais erros e evoluir para casos futuros. Referendou, então, a postura do Conselho Federal de criar um protocolo de enfrentamento à violência contra mulheres advogadas.

A fala foi seguida por expressivo debate de representantes de várias bancadas seccionais – algumas inclusive se fizeram representar apenas por mulheres, que, em sua maioria, são representantes suplentes7.

Discutiu-se inclusive sobre o papel da OAB junto à sociedade civil no combate à violência contra a mulher.

Destaco, neste contexto, o amplo referendo ao protocolo em gestação. A conselheira federal Sílvia Souza, representante titular da bancada de São Paulo, alertou que a criação de um protocolo será inócua se vier desacompanhada de um programa de implementação e de educação sobre o seu teor. A fala veio respaldada em sua experiência como assessora da CPI do feminicídio da Câmara Legislativa do Distrito Federal, na qual constatado que os protocolos já existentes são descumpridos de forma expressiva8.

Também neste escopo, Ana Paula Araújo, conselheira federal pela OAB/CE, destacou como a OAB pode contribuir na implementação da política pública de educação sobre a violência contra a mulher, prevista no inciso V do artigo 8º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)9.

Sobre a exposição do caso, houve quem reconhecesse seu papel como um pedido de socorro e sua importante função como um clamor por avanços nessa pauta. Contudo, houve também quem tratasse a divulgação do estupro como uma opção da vítima.

Sílvia Souza bem pontuou que a divulgação da intimidade da vítima decorre não de opção, mas de falta de opção, uma vez que não teve sua voz ecoada como gostaria. Ressaltou que, neste caso específico, a vítima teve coragem de aparecer e denunciar as violações, mas o mais comum é que as mulheres não tenham coragem de denunciar atos que nos violam como mulher, como uma aproximação física ou um contato físico inapropriado.

Claro que nos falta coragem. Sabemos da resposta enérgica do sistema posto contra quem desafia a dominação masculina.

Foram vários os votos de solidariedade dirigidos à gestão da Seccional e de parabéns pela condução do caso. Muitos mais, contudo, foram os votos de solidariedade à advogada e de reconhecimento de que a instituição falhou.

O processo administrativo corre em sigilo, não sabemos quais os passos dados para a apuração do caso. Mas conhecemos a dominação masculina, a violência simbólica e a força das instituições para manter o status quo – hoje pautado na subordinação feminina. Sabemos também que o poder simbólico, de supremacia branca e masculina, está institucionalizado e normalizado de tal maneira que é reproduzido quase que sem se notar.

Mas então, o que seria suficiente para uma condução adequada de um crime cometido contra a mulher advogada?

O ex-presidente do Conselho Federal, César Britto, advogado oriundo da OAB/SE, ressaltou que os episódios de violência sexual contra mulheres não são isolados e que se associam à cultura de que a mulher é submissa. Reforçou a necessidade de dar uma resposta imediata e exemplar àqueles que ainda acham que a mulher é coisa.

Ophir Cavalcante Júnior, também ex-presidente do Conselho Federal, enfatizou com veemência a necessidade de cada um dos membros da OAB posicionar-se em favor da advogada, com atos efetivos e um comprometimento firme, expresso e manifesto.

Com efeito, uma postura de neutralidade, a pretexto de ser imparcial, compactua com a manutenção do sistema vigente, dos estereótipos de dominação branca e masculina. O paradigma da neutralidade metodológica do direito e das instituições tem servido para perpetuar as desigualdades de gênero e raça, mantendo estereótipos de inferioridade e reproduzindo as violências simbólicas. O neutro é injusto.

Arrisco, portanto, que o suficiente seria sair da neutralidade.

Tomar partido. Manifestar-se expressamente em defesa da vítima, mostrar suporte manifesto e enfático, permitir que ela consiga espaço para respirar.

Repudiar a agressão, o agressor e qualquer pessoa que tente minimizar a gravidade do crime. Problematizar quem não assume sua responsabilidade na manutenção da violência simbólica.

Levar o caso ao Conselho Federal e ver os mais ilustres advogados e advogadas do Brasil discutindo o sistema por inteiro. Encher o plenário de mulheres. Repensar quais os postos que as mulheres ocupam na Ordem, cobrar e entregar representatividade de gênero e raça – na OAB e na sociedade civil.

É necessário criar protocolo de enfrentamento à violência contra mulheres advogadas. Mas não é suficiente.

É suficiente agir com viés de gênero e raça.

É suficiente levantar os panos quentes.