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Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul

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Fernanda Figueira Tonetto Braga: “Como responsabilizar internacionalmente a Rússia pela guerra na Ucrânia?”

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Fernanda Figueira Tonetto Braga, Procuradora do Estado do RS nos Tribunais Superiores em Brasília e membro da ESAPERGS
Artigo publicado no site Consultor Jurídico em 21/09/2022

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia no início deste ano e diante das cenas de destruição que chocaram o mundo, passamos a nos perguntar quais são os instrumentos que o direito internacional possui para punir possíveis crimes cometidos no território ucraniano por ordem do presidente russo e seus comandantes militares.

Essa pergunta veio à tona a partir do momento em que Vladimir Putin trouxe de volta o pesadelo da guerra para o solo europeu e ressuscitou as memórias do holocausto nazista e do sangrento separatismo na antiga Iugoslávia. Apesar disso, não parece que o conflito tenha data para acabar. Até agora, as tentativas de negociações diplomáticas não tiveram êxito e as sanções sofridas pela Rússia são econômicas e quase simbólicas diante de uma potência mundial que se preparou e planejou uma guerra que pode trazer muito mais ganhos do que perdas para o invasor.

Se falharam a economia e a diplomacia, qual o papel do direito e, mais precisamente, do direito internacional na reparação dos danos e na punição dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos em solo ucraniano?

Das cenas vistas e das notícias recebidas no mundo ocidental, parece evidente o cometimento de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.

O conceito desses crimes hoje é claro graças à longa construção histórica que culminou com uma pormenorizada tipificação, atualmente sedimentada no Estatuto do Tribunal Penal Internacional. A partir das definições ali explicitadas, seria difícil não concordar com o fato de que a Rússia vem cometendo ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil, vem realizando violações graves às Convenções de Genebra de 1949 e que, para tanto, fez uso da força armada para violar a soberania, a integridade territorial e a independência política da Ucrânia.

Até aqui parece fácil afirmar que a Rússia, por meio de seus agentes, cometeu crimes internacionais e merece ser punida. Mas a pergunta é: de que forma?

Para responder a essa indagação, vamos analisar a possibilidade de condenação da Federação Russa em duas jurisdições internacionais: a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e a Corte Internacional de Justiça (CIJ). O debate sobre as possibilidades de Putin ser levado ao Tribunal Penal Internacional ficará para uma outra reflexão.

Pois bem. No documento base da CEDH, que é a convenção europeia de direitos humanos, existe uma previsão que possibilitaria a condenação do Estado Russo especificamente por violação ao direito à vida. É o que prevê o artigo 2º da convenção, ao afirmar que o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei. Considerando que uma das formas de cometimento das graves violações é por meio da prática de homicídio, tanto para os crimes de guerra quanto para os crimes contra a humanidade, a condenação da Rússia poderia advir da infração a esse dispositivo convencional.

Porém, por mais otimista que seja o esforço argumentativo, a condenação do Estado nesse caso não seria propriamente por crime contra a humanidade ou por crimes de guerra, e muito menos por crime de agressão, mas sim por violação ao direito à vida, pura e simplesmente.

Na Corte Europeia, esses atos não estão sujeitos a uma condenação penal, mas tão-somente a uma reparação civil traduzida em indenização e multa, mediante ação individual movida pelos sujeitos afetados contra o Estado supostamente violador.

Partindo da análise dos elementos do crime contra a humanidade especificamente, ainda se poderia pensar em uma possibilidade de condenação do Estado Russo por desrespeito a outros direitos previstos na convenção, tais como a proibição da tortura (artigo 3º) ou a violação do direito à liberdade e segurança (artigo 5º), caso provada a prática desses atos.

Mas, apesar dessa longínqua possibilidade de enquadramento material dos atos dentro da convenção europeia de direitos humanos, a responsabilização da Rússia enfrentaria um óbice processual praticamente intransponível.

Isso porque logo no início da guerra a Rússia foi expulsa do Conselho da Europa, o que automaticamente impede a sua sujeição à jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Essa expulsão independe do fato de o Estado Russo denunciar a convenção europeia de direitos humanos. Com a sua saída, portanto, sujeitos que tenham seus direitos violados pelo Estado Russo não poderão peticionar perante a CEDH. Nesse caso, suas demandas não seriam sequer conhecidas pela Corte.

Esse é um daqueles casos em que uma tentativa de sanção criada pelo direito internacional traz um bônus muito maior do que o ônus para o Estado “punido”. Em outras palavras, ganhou a Rússia com sua expulsão, já que não mais se sente obrigada a respeitar a convenção europeia de direitos humanos.

Mas, se no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos a possibilidade material de punição esbarra na impossibilidade processual, na Corte Internacional de Justiça o que ocorre é exatamente o contrário: se por um lado a Rússia está sujeita à jurisdição da Corte, por outro lado não parece existir um documento de base para a sua responsabilização e para o enquadramento substancial de seus atos como graves violações ao direito internacional.

Uma vez que é membro da ONU, o Estado Russo está sujeito à Corte Internacional de Justiça, já que esse é o órgão jurisdicional máximo das Nações Unidas. Nesse caso, a ação poderia ser ajuizada diretamente pela Ucrânia contra a Rússia. Aqui estaríamos diante de uma ação a ser movida por um Estado contra outro Estado, diferentemente do que ocorre na CEDH em que a ação é ajuizada contra o Estado por um particular, via de regra.

Até aqui, tudo bem.

O problema é para o enquadramento da prática de crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão seria necessário identificar uma convenção internacional firmada no âmbito das Nações Unidas sobre o assunto, da qual a Rússia seja signatária, e que, além disso, preveja a jurisdição da Corte Internacional de Justiça.

Se o Estatuto de Roma não prevê a jurisdição da Corte Internacional de Justiça para essas violações e tampouco o faz a convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o único caso possível de enquadramento estaria na convenção internacional para a prevenção e a repressão do crime de genocídio.

Foi com base nesse documento que a Ucrânia ajuizou ação contra a Rússia perante a CIJ, em 26 de fevereiro de 2022, acusando-a de planejar atos de genocídio, uma vez que estaria matando intencionalmente pessoas de nacionalidade ucraniana e prejudicando gravemente a sua integridade física.

No entanto, para a configuração do crime de genocídio, exige-se do violador a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso e não apenas um ataque sistemático e generalizado a uma população civil. O genocídio é um crime com muitas especificidades e o mais grave dentre os crimes internacionais.

Em uma primeira análise, não parece possível concluir pela prática de crime de genocídio pelos militares russos em território ucraniano, pelo menos não até o presente momento. Para tanto, seria necessário comprovar ao longo do processo uma intenção da Rússia de exterminar um determinado grupo.

Apesar de a Corte ter deferido o pedido da Ucrânia de medidas conservatórias, determinando a suspensão imediata das operações militares, é preciso lembrar que a jurisprudência internacional sempre foi bastante comedida no reconhecimento do genocídio, fazendo-o somente em casos mais evidentes e extremos, a exemplo do que ocorreu nas decisões do Tribunal Penal Internacional de Ruanda.

Basta ver a decisão prolatada pela Corte Internacional de Justiça no julgamento dos casos Croácia versus Sérvia e Bósnia e Erzegovina versus Sérvia, em que as demandas foram rejeitadas. Em suma, a CIJ entendeu pelo não cometimento de crime de genocídio durante a guerra dos Balcãs, mesmo tendo diante dos olhos o massacre de Srebrenica, o mesmo que ensejou a condenação de Karadzic no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.

O que dizer então de um caso em que não há evidências do cometimento de crime de genocídio? A resposta é que dificilmente a Corte Internacional de Justiça acolherá o pedido da Ucrânia com base na convenção internacional para a prevenção e a punição do genocídio. Se não o fez em um caso claro de genocídio, dificilmente o fará em uma situação duvidosa.

Em suma, mesmo diante de graves violações aos direitos humanos e a uma série de tratados internacionais, falha mais uma vez o direito internacional em seu objetivo de solucionar litígios entre Estados por uma via pacífica. O conflito da Ucrânia já dura mais de meio ano e seus desdobramentos fazem crer que existem apenas duas formas de encerrá-lo: ou pela rendição da Ucrânia ou pelo ingresso de países militarmente poderosos, com o risco de desencadear-se uma nova guerra mundial, em pleno século 21.

*Fernanda Figueira Tonetto Braga é Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores em Brasília, pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito, Recursos Naturais e Sustentabilidade, da Universidade de Brasília (Gern-UnB), pós-doutora em direito pela Universidade de Brasília (UnB), doutora em Direito Internacional pela Université Paris II Panthéon-Assas, doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFSM), mestre em Integração Latino Americana pela UFSM.

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